segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Sobre ano novo, itinerância pastoral e ministério da consolação. A propósito de “discípulas e discípulos no caminho da missão formam/do uma comunidade de fé; comunhão e serviço”.



O ano de 2013 chega a seu ocaso. Dentro de algumas horas estaremos em um novo ano, 2014. Como em todo final de ano, é comum nesses dias, as pessoas fazerem suas resoluções para o ano seguinte.  Quase sempre as últimas horas do ano que se finda e as primeiras do que se inicia são carregadas de misticismo e atos supersticiosos. O povo brasileiro é místico, e em sua mística se apega a diversos rituais na expectativa  de entrar  e vivenciar um ano melhor do que o que para trás fica. As receitas são inúmeras, algumas até engraçadas, vão desde a usar roupas brancas e lançar oferendas a Iemanjá, até o comer focinho de porco (dizem que dá sorte, pois o focinho aponta para frente). Outros evitam comer pés de galinhas, (pois dizem que a penosa quando viva vivia a ciscar para trás).  Bom, cada um com sua “esquisicrendice”...  Verdade é que as pessoas fazem de tudo para evitar o sofrimento frente ao novo, o desconhecido.

Eu e minha família encerraremos 2013 e entraremos 2014 na vigília na igreja. Depois teremos uma confraternização. Nada mais metodista do que entrar o ano orando e comendo.
Essa vigília de final de ano para nós é especial, pois é o ultimo momento que vivenciaremos a frente da IMEFAS – Igreja Metodista em Fátima do Sul, enquanto pastor e família pastoral. Alterações profundas nos aguardam. Todavia,  o que norteará minha vida em 2014, o qual chegará com mudanças radicais em minha vida e de minha família é a convicção do Senhorio e cuidado de Deus. A supracitada palavra "MUDANÇAS" é literal, pois mudarei de cidade, de comunidade. Desde o inicio de meu ministério tenho caminhado com base nas promessas de Deus contidas em toda a Escritura, todavia, dois versículos do AT sempre me inspiraram e nortearam minha caminhada. O primeiro mostra que Deus é Senhor cujos propósitos são imutáveis: "Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido." Jó 42:2. " Vejo na supracitada fala de Jó, o reconhecimento do agir de DEUS, como SENHOR ABSOLUTO da história. Jó fala de um DEUS que possui propósitos, planos, projetos. E creio que ELE nos chama a participar de tais metas, e nos capacita para sermos cooperadores em seu propósito de salvar o mundo.

O segundo versículo aponta para a minha responsabilidade pessoal dentro do propósito de Deus, e diz assim: "Esforça-te, e tem bom ânimo; não temas, nem te espantes; porque o SENHOR teu Deus é contigo, por onde quer que andares." Josué 1:9. Essa palavra de Josué sempre me deu segurança, pois traz a promessa de que meus esforços serão coroados pela presença de DEUS, e igualmente, com sua benção. Todavia, deixa claro também que haverá lutas e enfrentamento a pessoas, espíritos anti-reino e estruturas demonizadas. Não há servo de Deus que viva vida isenta de oposições, pois se não fosse assim, o "ESFORÇA-TE" seria um conselho inútil na citação. O ESFORÇA-TE está no texto para nos lembrar de que haverá batalha, e tal batalha será travada muitas vezes contra nós mesmos, contra o desejo de abandonar o projeto de DEUS, ou de nos tornarmos o centro dele.  A presença de DEUS é o mais importante, mesmo quando eu falhar, ELA irá me sustentar. Mesmo quando eu fraco estiver, ela forte me fará, pois a Presença de DEUS nada mais é do que a GRAÇA a nos suster seja no sucesso ou no fracasso, na alegria ou na dor, na saúde ou na doença. Assim como, Paulo, eu espero tão somente na GRAÇA DE DEUS.  Como ele falou a Paulo, também diz a mim: "Minha graça é suficiente a você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza". Assim, como Paulo declarou, também declaro eu: “Portanto, eu me gloriarei ainda mais alegremente em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse em mim. “ - 2 Coríntios 12:9

A GRAÇA de DEUS é ALIANÇA em CRISTO, que ELE colocou em nossos corações por meio de seu ESPÍRITO SANTO. A GRAÇA, ou ALIANÇA de DEUS, nos basta. A FIDELIDADE DELE é que me dá segurança, pois como diz as ESCRITURAS em II Tm. 2: 13: “Se formos infiéis, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo.” Como tem sido até aqui, O DEUS da Palavra norteará meus passos, me fortalecerá em minhas fragilidades, me capacitará em minhas deficiências, me ajudará a me policiar em minhas eficiências, sim, pois muitas vezes o que nos derruba são nossas eficiências, uma vez que por trás delas se manifestam o orgulho e a soberba, os quais precedem a ruína. Conhecendo-me, penso que, se necessário for, e às vezes é;  DEUS porá em mim um espinho na carne.

Reconhecer que preciso de DEUS me leva a confessar que preciso do HUMANO, do meu próximo. DEUS, na atualidade usa de pessoas para consolar pessoas. No ministério da consolação somos “anjos” de DEUS. Nas nossas horas de angústias ELE usa de homens e mulheres para nos ajudar, e nos usa para ajudar a outros,  ELE nos “conforta em todas as nossas tribulações, para que, pela consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus, possamos consolar os que estão em qualquer angústia”! - 2 Coríntios 1:4. Paulo passou por angústias e experimentou a consolação DIVINA por meio do HUMANO.  Segundo Lucas, Paulo passou por tribulações internas e externas.  “... Quando chegamos à macedônia, a nossa carne não teve repouso algum; antes em tudo fomos atribulados: por fora combates, temores por dentro. Mas Deus, que consola os abatidos, nos consolou com a vinda de Tito. E não somente com a sua vinda, mas também pela consolação com que foi consolado por vós, contando-nos as vossas saudades, o vosso choro, o vosso zelo por mim, de maneira que muito me regozijei. -  2 Coríntios 7:5-7

O que peço a DEUS para 2014.

 Para o ano de 2014 não desejo a você e tampouco para mim um ano isento de lutas, o que peço  ao SENHOR é que ELE ESTEJA PRESENTE na minha vida pessoal e familiar, bem como na de meus/minhas colegas e amigos/as, principalmente na vida daqueles/as que estão experimentando a mudança de igrejas, alguns/mas pela primeira vez, assim como, eu.

O que desejo para mim e para minha família e amigos é que O SENHOR esteja conosco e nos leve a levar a PRESENÇA DELE ao próximo. Peço a ELE visão do REINO e DIREÇÃO para que eu não me enlace em projetos humanos de poderes terrenos e egocentrados. Peço a ELE que me de humana indignação frente as desumanas opressões sociais. Peço a ELE que abra meus olhos para ver. Me de inspiração para julgar. E unção para agir. Peço a ELE que não me deixe se calar diante do clamor dos que sofrem. 

Peço a ELE não um ano de paz perfeita, sem problemas, pois sei que isso é ilusão, nem Jesus Cristo orou pedindo tal privilégio. A ELE não peço ausência de dificuldades, antes peço que me de serenidade e sabedoria  para enfrentar os problemas. Peço a ELE resiliência para superar as adversidades. Paciência para suportar as provações. Peço a ELE fé para crer que no final de cada deserto que possa surgir em 2014 haverá um oásis, e que depois de vencida as tentações, os anjos me servirão (Mt. 4. 11). Peço a ELE convicção para me manter firme aos meus ideais. Peço a ELE certeza no AMOR DELE para pedir perdão quando eu cair. Peço a ELE humildade para pedir ajuda ao meu próximo e humanidade para ajudar a quem ajuda me pede. Peço a ELE que me de sensibilidade para entender e atender ao que não pede ajuda verbalmente, mas com o silêncio sofredor clama e reclama por atenção e amor.

Peço a ELE que me de a graça de encontrar na igreja que pastorearei, pessoas como as que para trás deixei. E que elas encontrem em mim um pastor segundo o coração de DEUS.  Pessoas com as quais mantive um relacionamento filial e paternal em 11 anos de pastorado.  Peço a ELE que as pessoas que para trás deixo sejam movidas a fazer pelo novo pastor o mesmo que fizeram comigo. Peço a ELE que, eu e tantos outros/as pastores/as, que estamos experimentando a mudança de comunidades possamos encontrar a PRESENÇA e AÇÃO DELE por meio de pessoas acolhedoras e amáveis. Pessoas que entendendo o processo de nossa denominação nos auxiliem como obreiros que exercem seus Dons e Ministérios, e não como donos de igrejas e ministérios. 

Peço a DEUS que, sob o impulso do ESPÍRITO SANTO, tanto os/as pastores/as  que mudam, como os/as que permanecem e toda a liderança da Igreja Metodista, assim como nos desafia o tema do biênio 2014/2015, sejam “discípulas e discípulos no caminho da missão formam/do uma comunidade de fé; comunhão e serviço”.

FELIZ ANO NOVO - QUE VENHA 2014 COM TODOS OS SEUS DESAFIOS, POIS O SENHOR DO TEMPO, EM TODO TEMPO, O TEMPO TODO  ESTÁ E ESTARÁ CONOSCO.

 Reverendo José do Carmo da Silva – Mano Zé


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

No Woman No Cry -"Não Chores Mais". Pois, Bob Marley ressuscitará! - Mano Zé

Quero neste artigo, brevemente discorrer sobre um pouco da vida do cantor jamaicano Robert Nesta Marley, e sobre sua religião o Rastafarismo. Robert Nesta nasceu em 6 de Fevereiro de 1945, em Nine Mile, norte da Jamaica, filho de uma jovem negra de 18 anos, por nome Cedella Booker e do inglês Norval Marley, um cinqüentenário, branco, capitão do regimento britânico das Índias Ocidentais, provavelmente protestante de tradição anglicana. O Capitão veio a falecer em 1955, diante do ocorrido, o pequeno Marley se mudou com sua mãe para Trench Town, uma favela de Kingston, conhecida como, cidade do esgoto.

Trench Town era assim chamada por ter sido construída sobre as valas que drenavam os dejetos da parte antiga de Kingston. A infância de Bob, não fora fácil, pois vivia constantemente sendo provocado pelos negros locais, por ser fruto da união de uma negra com um branco. Sua infância e juventude foram cheias de dificuldades.

Assim como o líder hindu Mohandas Karamchand Gandhi, intitulado o Mahatma Gandhi, e o protestante batista, Martin Luther King Jr entraram para a História por suas lutas pela liberdade, paz e a igualdade entre os povos, Bob Marley também possui uma trajetória de militância religiosa, política e social. Talvez, o que você tenha ouvido falar dele, é, que era um negro, cantor de Reggae, fumador de maconha, e que não escovava a cabeleira, cujos cabelos trançados formavam grossos canudos carregados de piolhos no estilo Dreads Looks. Mas, Bob Marley, foi muito mais do que esse estereótipo de cantor de Reggae, que ficou no imaginário popular. Não quero transformá-lo em um santo, pois não creio em canonização póstuma, mas simplesmente quero partilhar com você alguns aspectos da vida e dos últimos passos da “Lenda do Reggae”.

Deixe o preconceito de lado, e venha comigo! Não precisa acender um baseado, acenda sim a vontade de conhecer, alimentando a fogueira de seu conhecimento, pondo mais lenha no seu saber. Sim, venha comigo! Mesmo que você não goste de Reggae e de nenhuma outra música ou ritmo negro. Ao final desta viagem você descobrira sem rebordosa, que Bob morreu com o mesmo selo da promessa que temos. E, se acaso não tens ainda tal selo, ou nem saiba do que se trata, ao final do post, espero que a Graça de Deus, cujo Nome é "JÁH" (Sl.68.4) te ilumine de forma que possa passar a tê-lo.

Vejamos um pouco mais sobre a história desse poeta morto, ícone do Reggae mundial.

Como disse alguém, "morre o homem, nasce o mito", no caso de Bob, ficou a lenda, a "Eterna Lenda do Reggae" como é chamado! Pois, mesmo 29 anos após sua morte, fazendo jus ao título supracitado o cantor jamaicano, morto vitimado pelo câncer aos 36 anos, ainda hoje faz sucesso com suas músicas, vendendo milhares de cópias e influenciando as novas gerações.

Quem conhece as letras embaladas ao ritmo do Reggae, facilmente notará que Bob Marley possuía forte consciência política e religiosa. E nestes dois aspectos ele buscava influenciar a juventude por meio de suas canções.

Em 74, Bob passou maior parte de seu tempo em um estúdio, gravando o álbum “Natty Dread” que resultaria no sucesso de “No Woman no Cry”. “No Woman no Cry”, dentre outras canções foi a faixa mais executada e que embalou a juventude jamaicana no final da primeira metade dos anos 70. O sucesso foi tanto que em novembro de 74, Marley se tornou a maior estrela musical da ilha Jamaicana, começando também a despontar internacionalmente. .

Com o sucesso internacional cresceu a importância política de Bob Marley na Jamaica, onde a fé Rastafari expressada pela sua música alcançava forte ressonância na juventude dos guetos. Como forma de agradecimento ao povo da ilha, Bob decidiu dar um concerto aberto no Parque dos Heróis Nacionais de Kingston, em 5 de dezembro de 1976. A idéia era enfatizar a necessidade de paz nas ruas da cidade, onde as brigas de gangues estavam a causar confusão e mortes. Logo depois do anúncio do show, o governo convocou eleições para o dia 20 de dezembro. Isso deu nova força à guerra no gheto e, na tarde do concerto atiradores invadiram a casa de Bob e alvejaram-no. Na confusão os atiradores apenas feriram Marley, que foi levado a salvo às montanhas na cercania da cidade. Entretanto ele resolveu fazer o show de qualquer maneira e subiu ao palco para uma rápida apresentação em desafio aos seus agressores. Foi a última apresentação de Bob na Jamaica por oito meses. Logo após o show ele deixou o país para viver em Londres, onde gravou o seu próximo álbum, “Êxodus”.

O álbum Êxodus fulgura no cenário da música mundial como um dos maiores sucessos de Bob Marley.
A faixa-título, baseada no Êxodo do povo hebreu, é uma clara referencia ao back-to-africa, um movimento antigo na história da Jamaica. O back-to-africa pregava a volta dos escravos (ou seus descendentes) à África, o maior ícone do movimento foi o ativista negro Marcus Mosiah Garvey (1877 - 1840)

Além das músicas, o cantor jamaicano é dono de frases e pensamentos que muitas vezes são expressados por nós brasileiros, tais como: “Não cruze os braços diante de uma dificuldade, pois o maior homem do mundo morreu de braços abertos!". Sim! O homem que ele se refere na frase é Jesus Cristo, pois, o Rastafarismo possui em sua constituição, misturas de doutrinas e conceitos judaicos cristãos. Eles acreditam que são descendentes da Rainha de Sabá, a qual voltou grávida da visita ao rei e sábio judeu Salomão, cuja narrativa se encontra no capitulo 10 do primeiro livro de Reis.

Embora o texto bíblico não traga tal informação, existe uma lenda de que a rainha voltou para Sabá grávida e teve um filho chamado Menelik, o qual se tornou o primeiro rei etíope. Além do filho no ventre a rainha trouxe para sua terra doutrinas judaicas as quais foram mescladas a religião de seu povo. A tais doutrinas mais tarde juntaram-se conceitos do cristianismo etíope. Mas, a maior influência veio do judaísmo, pois o Rastafári que realmente prática sua religião, segue rigorosamente as dietas alimentares contidas em Levítico cap 11, sendo até mais radicais do que os judeus, pois são vegetarianos.

O uso da maconha está mais para ato sacramental, do que conseqüência de um vício. Eles consideram a "ganja" (maconha) como a "erva da sabedoria" e seu consumo, faz parte dos rituais religiosos de meditação. Buscam se embasar no livro de Gênesis 1:29, "E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra". E entre outros textos citam o salmo 104:14 "Ele fez a grama crescer para o gado e a para o uso do homem, para que ele possa retirar a comida da terra."

Naturalmente, como componente religioso a erva fazia parte da vida de Marley, ele como seguidor do Rastafarismo era usuário de maconha. Devido a importância da erva no circulo religioso rastafariano, o jamaicano manifestava desejos capaz de causar arrepios e estranheza em qualquer cristão "ortodoxo". Ele disse: "Um dia vou morrer, afinal todos irão morrer, vão me enterrar, um fazendeiro muito louco vai me adubar e me transformar em um lindo pé de maconha. Só assim poderei saber que mesmo depois de morto continuarei fazendo sua cabeça!". O uso da erva não é uma prática de todos os seguidores do rastafarismo, não são todos que fumam maconha em seus cultos.

Imaginar um culto, onde a maconha é fumada ritualmente como "meio de graça" soa tão estranho para nós cristãos ocidentais, tal como, um cristão realmente abstêmio ao álcool como bebida tem como sendo heresia e pecado o uso do vinho com álcool por algumas igrejas cristãs na Santa Ceia. Isto apesar de Paulo no Capítulo 11 de primeira Coríntios deixar bem claro que, havia crentes embriagados na Santa Ceia, e, estavam quebrando a comunhão do Corpo de Cristo, não por tomarem vinho, mas pelo fato de que não esperavam os mais pobres chegarem, e antecipadamente comiam e bebiam a própria Ceia. Não fazendo apologia ao uso de drogas, mas tentando entender uma religião com preceitos diferentes da minha, eu penso que o uso da erva se aproxima do ritual do Santo Daime, muito difundido no Brasil e que faz uso do chá da Ayahuasca, na busca do contato com a divindade. O uso de outras drogas é proibido pela religião ou movimento Rastafári.

Polêmicas, baseados e vinhos a parte, a vida de Marley demonstra que ele buscava acima de tudo viver como um pacifista, que buscava a paz em meio aos conflitos raciais. Ele foi fortemente influenciado pelo militante dos direitos dos negros, Marcus Garvey, nascido em 1887, na Jamaica. Segundo, Gabriel Cavalcanti, Garvey defendia a volta dos negros à África e liderou diversos movimentos políticos tanto na Jamaica quanto nos Estados Unidos ao longo de sua vida. Apesar de ser considerado um dos pais do rastafarismo e pregar o retorno à África, sua luta era política e não religiosa.

Em suas canções Marley juntou as duas coisas, política e religião. Ele se tornou na Jamaica um ícone da luta contra o racismo. Por ser filho de um inglês branco, Bob buscava a comunhão entre os dois povos, por isso dizia: "A minha música não é contra os brancos. Eu jamais poderia cantar isso. A minha música é contra o sistema, que ensina você a viver e a morrer."-"Não preciso ter ambições. Só tem uma coisa que eu quero muito: que a humanidade viva unida... negros e brancos todos juntos." Na sua luta contra o sistema racista, Bob Marley combatia ardorosamente o racismo, pois acreditava que: "Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, sempre haverá guerra." "Acredito na liberdade para todos não apenas para os negros.”

Como ícone que se tornou, pretendia com seus discursos levar o povo jamaicano e a outros ouvintes de suas músicas á reflexão e mobilização social. Sua fala era sempre carregada de senso político e religioso, de seus lábios saíram perolas tais como: "É melhor atirar-se em luta, em busca de dias melhores, do que permanecer estático como os pobres de espírito, que não lutaram, mas também não venceram. Que não conheceram a glória de ressurgir dos escombros. Esses pobres de espírito, ao final de sua jornada na Terra, não agradecem a Deus por terem vivido, mas desculpam-se diante dele, por simplesmente, haverem passado pela vida.”

Ainda hoje, 29 anos após sua morte centenas de milhares de pessoas negras e brancas gostam de suas músicas. E muitos dos seus pensamentos, ainda hoje são expressos por pessoas que nem se quer conhecem sua história, sua religiosidade e militância política.

O Reggae, ritmo popularizado por Marley tem influenciado inclusive bandas evangélicas, tais como a californiana Christafari, uma das maiores bandas de reggae do cenário gospel mundial, e que já realizou várias turnês pelo Brasil.

Contudo, o estranho supracitado desejo expressado por Bob Marley de se tornar "um pé de maconha" após a morte (transmigração?) não se realizará. Pois, segundo as Escrituras, ele ressuscitará como justo dentre os mortos. Isto se deve a um capítulo da vida do ícone do Reggae mundial, que a maioria das pessoas, inclusive muitos de seus fãs desconhecem. Bob Marley, ressuscitará para a vida eterna, num corpo glorificado, pois um ano antes de morrer, convertera-se ao cristinismo etíope, entregando-se a Jesus Cristo e adotando um novo nome: Berhane Selassie.

Seu batismo cristão ocorrera no dia 4 de novembro de 1980 numa Igreja Ortodoxa Etíope. Segundo, Tommy Cowan, empresário de Bob, no ato de sua conversão no período em que lutava contra um câncer, Bob ficou 45 minutos chorando e por 3 vezes exclamou gritando:"Jesus my Savior, Jesus Christ!" ("Jesus meu Salvador, Jesus Cristo!")

Com a vida entregue a Cristo, o cantor jamaicano veio a morrer em um hospital em Miami no dia 11 de maio de 1981. Seu corpo foi enterrado com honras nacionais em Kingston, depois de uma cerimônia que contou com a presença de milhares de pessoas. Foi sepultado sob ritos próprios da Igreja Ortodoxa, com a sua Bíblia e sua guitarra Gibson!

Rita Marley, a viúva do cantor, diz que em seu leito de morte, agonizando de dor, Bob com a mão estendida para o céu, clamou: "Me leve Senhor Jesus Cristo". Tal atitude do cantor deixou sua esposa confusa, pois devido a religião rastafári, ela esperava ouvir o marido clamando por Selassie ao invés de Jesus Cristo.

Dois dos maiores sucessos do rei do Reggae ainda nos dias de hoje são: No Woman No Cry, que foi traduzida por Gilberto Gil com o titulo de "Não Chores Mais" e Redemption Song, traduzida por "Canção de Redenção". Embora não conhecesse plenamente a Deus, (se é que alguma religião pode dar tal conhecimento), na letra da canção abaixo citada, podemos notar muitas semelhanças com as denúncias dos profetas judeus, além de uma clara fé em Deus.

Redemption Song (Canção da Redenção)



Velhos piratas, é, eles me roubaram
Me venderam para os navios mercantes
Minutos depois eles me jogaram no porão
Mas minha mão foi feita forte
pela mão do Todo-Poderoso
Seguimos nessa geração
Triunfantemente.

Você não vai ajudar a cantar
Essas canções de liberdade?
Porque é tudo que já tive:
Canções de redenção
Canções de redenção

Emancipem-se da escravidão mental;
Ninguém além de nós mesmos pode libertar nossa mente.
Úh! Não tenha medo da energia atômica,
Porque nenhum deles pode parar o tempo
Por quanto tempo vão matar nossos profetas,
enquanto ficamos parados olhando?
É, alguns dizem que é só uma parte disso:
Temos que completar o livro.

Você não vai ajudar a cantar
Essas canções de liberdade?
Porque é tudo que já tive:
Canções de redenção:
Essas canções de liberdade,
Canções de liberdade.

Conclusão.

Como citei na introdução, Bob Marley possuía o selo da promessa, assim como você e eu possuímos. Além disso, o que se pode notar na história de vida do cantor é a presença de fome e sede por justiça. Ainda que tateasse buscando a Deus em meio a sua exótica religião, Bob, já antes de se confessar cristão etíope, movido pela virtudes que devem nortear o cristão atuava em questões sociais, buscando com o dom que tinha construir a paz. Claramente, nesses aspectos ele também se igualava a todos os cristãos que firmados no Evangelho, comprometem-se com a transformação da sociedade, por meio de uma fé engajada, encarnada e vivencial que busca a justiça e a paz! Penso que são para tais pessoas que Jesus faz as seguintes promessas no Sermão do Monte: "Felizes os que têm fome e sede de Justiça: eles serão saciados" "Felizes os que agem em prol da paz; eles serão chamados filhos de Deus". (TEB - Mt. 5. 6 a 9)

Portanto, se realmente o Rei do Reggae teve um encontro com Cristo, e o recebeu, Jesus deu lhe o poder de ser feito filho de Deus, pois acreditou no seu Nome, sendo digno de receber a graciosa promessa contida em João 1. 12: "Mas aos que o receberam aos que crêem em seu nome, ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus. Esses não nasceram do sangue, nem de um querer de carne, nem de um querer de homem, mas de Deus."

Bob Marley, a luz destes textos certamente se encontrará na Casa do Pai, onde Jesus nos foi preparar morada (TEB - Jo 14. 1 a 4), pois o Senhor disse, "Todos os que o Pai me dá viram a mim, e aquele que vem a mim eu não o rejeitarei" (TEB - Jo 6.37). Assim sendo, imagino que lá na glória entre os louvores cantados pela Igreja Triunfante, teremos um maravilhoso louvor no estilo e ritmo Reggae, mais do que nunca vou me sentir em casa! Aleluia!!.

Oremos e preguemos o Evangelho, para que assim como o Rei do Reggae teve um encontro com Cristo, ainda que tenha sido no seu leito de morte, o mesmo possa ocorrer com as gerações que ainda são influenciadas pela música dele. Que assim como aconteceu com ele, seus fãs possam saber e aceitar que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo, e invocá-lo. Que o povo jamaicano e todos os outros povos possam ser alcançados pela graça de Deus manifesta em Cristo Jesus, pois: Não há nenhuma salvação, a não ser nele; pois não há sob o céu nenhum outro nome oferecido aos homens, que seja necessário a nossa salvação. (TEB - At. 4.12)

Pr. José do Carmo da Silva "Zé do Egito"
Igreja Metodista em Fátima do Sul - MS

A desgraça causada pela teologia da maldição de Cam, e o "tá fudi.." de George Samuel Antoine - A propósito do terremoto haitiano. - Mano Zé

Esta é uma republicação de um  artigo escrito em 15 de janeiro de 2010, com o título: "O Haiti e a maldição de Cam." Para quem gosta de concisão aviso logo que ele envolve fatos históricos e teológicos, portanto, é  um pouco longo, mas não tanto quanto a luta do povo africano em África ou na diáspora forçada. Vale a pena, aos atarefados eu sugiro uma "leitura dinâmica"- Mano Zé



Hoje pela manhã,  eu e minha filha revíamos o vídeo onde George Samuel Antoine quebrava todas as leis da "diplomacia". Ele fez isso ao comentar o terremoto de 7 graus na escala Richter que atingiu o Haiti, país mais pobre das Américas, na última terça-feira, dia 12 de janeiro.  George Samuel Antoine é Cônsul do Haiti no Brasil, e numa entrevista veiculada pelo SBT, Sistema Brasileiro de Televisão, apontou como possível causa do terremoto certa maldição que pesa sobre o povo africano. Ao fazer tão infeliz comentário, o Cônsul não sabia que ainda estava sendo filmado. E fez a seguinte declaração: "A desgraça de lá tá sendo uma boa para a gente aqui ficar conhecido (…) Aquele povo africano acho que de tanto mexer com macumba, não sei o que á aquilo (…) O africano em si tem maldição. Todo lugar em que tem africano tá f…" .





Após ver o vídeo, deparei-me com outro artigo sobre o terremoto que tem causado comoção mundial. Em tal artigo o tele-evangelista estadunidense Pat Robertson explica as "desgraças" haitianas como sendo conseqüência de "pactos" ocorridos há duzentos anos entre os haitianos e o demônio.

Naquele momento lembrei-me do tempo da Fateo - Faculdade de Teologia, em São Bernardo do Campo - SP.

Não que lá eu tenha ouvido besteiras tamanhas, mas porque, ao fazer as pesquisas para um capitulo de meu TCC sobre os aspectos teológicos usados pela Igreja Cristã para legitimar a escravidão negra, cheguei a entrar em crise.

Entrei em crise ao ler sobre tantas desgraças feitas em nome de Deus, por pessoas que diziam acreditar Nele, sendo seus representantes, alegando até mesmo serem "cabeças visíveis" do Corpo de Jesus, a Igreja. Minha crise foi com os homens que diziam representar Deus e não com Deus, portanto minha fé abalou-se, mas não pereceu.

Ao estudar os materiais coletados para a Monografia, eu passava horas meditando sobre que tipo de espírito movia os teólogos que disseminaram o pensamento expresso no comentário infeliz do Cônsul sobre os africanos.

Ao rever o vídeo, não o censurei, pois o que ele disse não é exclusivamente fruto do pensar dele, antes, é fruto de sua crença, daquilo que aprendeu ou ouviu de algum religioso, pois as malfazejas palavras dele se baseiam em argumentos que no passado foram defendidos pela Igreja Cristã para legitimar a escravidão negra. Eduardo Hoornaert afirma:

O texto de Gênesis 9 pode ser chamado o texto "gerador" da ideologia escravista cristã. Ele se desdobrou durante a história da teologia e especialmente da patrística em numerosas reflexões, comentários, elucubrações, tendo como finalidade justificar a existência da escravidão como instituição dentro do próprio corpo cristão. [...] Na cultura cristã, a famosa maldição de Cam e de Canaã se tornou uma espécie de artigo de fé, um arsenal de armas ideológicas cuja capacidade de alvo supera de longe a dos arsenais de guerra mais sofisticados, e que está longe de ser desmantelado nos dias que correm.

A prova de que a Igreja Cristã cria que os negros eram os herdeiros da maldição lançada por Noé sobre Cam, evidencia-se numa oração em favor da conversão ao catolicismo dos povos da África Central. Tal oração, que parte da Secretaria da Sagrada Congregação das Indulgências, Roma, em 12 de novembro de 1873, convida os católicos a rezarem assim:

"Rezemos pelos povos muito miseráveis da África Central que constituem a décima parte do gênero humano, para que Deus onipotente finalmente tire de seus corações a maldição de Cam e lhes dê a benção que só podem conseguir em Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor: Senhor Jesus Cristo, único Salvador de todo gênero humano, que já reinais de mar a mar e do rio até os confins da terra, abre com benevolência o seu sacratíssimo coração mesmo às almas mui miseráveis da África, que até agora encontram-se nas trevas e nas sombras da morte, para que pela intercessão da puríssima Virgem Maria, tua mãe imaculada, e de São José, tendo abandonado os ídolos, os etíopes se prostrem diante de Ti e sejam agregados à tua santa Igreja."

É justo ser imparcial aqui, esclarecendo que tais argumentos também foram usados pelos cristãos protestantes, para fazerem uso da mão-de-obra escrava negra.

Sem querer polemizar, mas, sendo sincero no que eu creio, eu penso e estou escrevendo, quero tecer alguns comentários sobre o demônio e seus instrumentos humanos e estruturais.

Inicio dizendo que é muito fácil satanizar os outros, vendo sempre o diabo naquilo e naqueles que são diferentes, fechando os olhos para a ação do mal no meio de nossos sistemas religiosos os quais divinizamos. Portanto, olharei para dentro de minha religião cristã, a fim de resgatar fatos históricos, que pessoalmente interpreto como situações, onde cristãos atuaram como protagonistas, servindo a causa do mal.

Salvo no satanismo declarado, a luz das Escrituras sagradas de quaisquer religiões, o demônio é sempre o portador de opressão e escravidão.

Assim sendo, não negando a pessoalidade dele, para os judeus dos dias de Jesus de Nazaré, o maligno era o Império Romano e suas Legiões.

Para os povos que habitavam as Américas os "demônios" chegavam deslizando sobre as águas em suas imponentes naus. Eram portugueses, eram espanhóis, como no caso de nossa tão sofrida América Latina.

Os astecas, só depois de verem muitos dos seus mortos, se deram conta que os espanhóis não eram deuses, embora falassem e batizassem em nome de um Deus.

A História nos mostra que, na colonização das Américas, o "demônio" se personificou na escravidão, opressão e morte, experimentadas em grandes escalas pelos nativos, depois do contato com aqueles que traziam a "cruz" e o "credo".

Ou seja, na visão dos povos colonizados, tidos pelos europeus como "bárbaros pagãos" o mal sempre veio junto com os ditos "civilizados cristãos".

Ver tanto mal causado em nome de Cristo, que só pregou, viveu e morreu pelo bem da humanidade, me deixou em crise, mas, buscando refúgio na oração e na meditação das Escrituras, com a graça de Deus pude superá-la. E minhas leituras da Bíblia e da História me convenceram definitivamente que, não fora o Espírito Santo a força motriz de tantas desgraças, mas, sim, a ambição, o preconceito, o racismo e acima de tudo, o amor ao dinheiro, raiz de todos os males da humanidade.

O amor ao dinheiro e ao poder dele derivado fazem surgir ditadores de todos os matizes, ou seja, independente da cor da tez, o espírito ditatorial historicamente possuiu desde ao alemão Adolf Hitler até o negro ugandense Idi Amin Dada Oumee, conhecido como: "O talhante de Kampala", "senhor do horror" e "o carniceiro da África".

Estima-se que Idi Amim Dada, que se manteve no poder de 1971 a 1979, tenha matado entre 300 mil a meio milhão de pessoas durante o seu regime ditatorial.

O Haiti, ou ao menos, fragmentos dele, "e infelizmente do que há de pior nele", tornou-se bem conhecido do povo brasileiro, desde que o Brasil aceitou comandar a missão militar da ONU enviando 1200 soldados para ocupá-lo, numa forma de ajuda humanitária.

Atualmente o país tem tido espaço na mídia mundial, devido ao terremoto que matou dezenas de milhares de pessoas, inclusive militares brasileiros e a médica pediatra e sanitarista Zilda Arns, fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança.

Talvez o que pouquíssimas pessoas saibam é que o Haiti fulgura na História como a primeira nação americana que se viu livre da mais execrável vilania que já se viu debaixo do céu. A existência da sofrida população haitiana esta ligada à história da escravidão, à luta e libertação dela. Libertação que veio através da revolta dos negros escravizados. E, é por terem obtido a vitória numa revoltosa luta pela liberdade que Pat Robertson declara que o diabo ajudou aos negros haitianos.

Contrariando Pat Robertson, julgando por aquilo que está em Êxodo capítulo três, a Divindade que se coloca ao lado dos escravos é Deus, não o demônio. O demônio está do lado do opressor, personificado em Faraó e seus magos, que fazem de tudo para manter o povo sob o jugo da escravidão.

Deus se opõe à escravidão, pois ela tira o que existe de mais sagrado para o ser humano, a liberdade. Pela liberdade o ser humano é capaz tanto de matar, como de morrer. Assim como, muitos escravos faziam, optando pelo suicídio como fuga da escravidão.

A escravidão citada pela Bíblia é totalmente diferente da imposta aos povos africanos pelos europeus, diferindo-se  também da escravidão que existia entre tribos africanas.

Deus não amaldiçoou aos negros, ao contrário do "racistacinio" do Cônsul haitiano, George Samuel Antoine, Javé os amou! Amor expresso nesta declaração: "Não sois vós para mim, ó filhos de Israel, como os filhos dos etíopes?" (Amós 9.7).

Creio que, quem estava ao lado, ou a frente dos negros haitianos na rebelião que levou à libertação, era Deus e não o Maligno. Veja um trecho da história da revolução haitiana:

O ano de 2004 marca o bicentenário da maior revolta de escravos da história, que conseguiu de forma genial derrotar os mais poderosos exércitos da época: francês, inglês e espanhol. Genial, porque aproveitou a experiência militar dos negros trazidos da África para trabalharem até a morte como escravos na "Pérola das Antilhas", a mais lucrativa colônia da época. Usando técnicas de guerrilha, entre 1791 e 1804 o exército de libertação liderado por Toussaint e Dessalines fustigou incessantemente as forças regulares das potências colonialistas até obter a vitória, na maior epopéia de libertação jamais vista pela Europa. A Revolução Haitiana foi feita pelos haitianos, mas sua vitória pertence a todos os povos, por demonstrar, no alvorecer do século XIX, a possibilidade real de derrotar um inimigo várias vezes mais poderoso. Dessa forma, os haitianos destruíram o mito da invencibilidade da Europa, e deram o exemplo para as lutas de libertação nas colônias da América Latina.

O exemplo de liberdade não poderia sobreviver impunemente: por mais de 60 anos os Estados Unidos impuseram bloqueio econômico ao Haiti, e a França impôs pesadas compensações pela perda da lucrativa colônia, estrangulando a economia do pequeno e recém-criado país. O Haiti foi a primeira nação americana livre da escravidão. Nesses dois séculos desde a independência, a ilha foi alvo dos interesses colonialistas e imperialistas, sendo ocupada pelos Estados Unidos entre 1915 e 1934, levando à morte milhares de haitianos.

Entre 1957 e 1986 as ditaduras de Papa Doc e Baby Doc espalharam o terror e resultaram em revolta popular. Em 1990, defendendo um programa de governo popular, o ex-padre Jean-Bertrand Aristide foi eleito com 70 % dos votos, para ser deposto por golpe militar apoiado pelos Estados Unidos em 1991.

De volta em 1994, agora com o apoio dos EUA, e com posições políticas pró-imperialistas, Aristide governou com o apoio de milícias armadas. Porém, devido à forte oposição popular, a situação tornou-se insuportável."

Argumento que: se considerarmos que os escravistas eram cristãos que diziam crer em Deus, e tomando a sério a explicação de Pat Robertson de que os negros se aliaram ao diabo para conseguirem a liberdade, somos obrigados a acreditar que Deus pela primeira vez na história perdeu para o diabo, pois como acima citado no alvorecer do século XIX, o povo haitiano derrotou um inimigo infinitamente mais poderoso do que eles.

Eu prefiro acreditar que a vitória foi possível por estar Deus ao lado dos oprimidos e não dos opressores, isto independente da religião deles. E que a atual miséria do Haiti se deve ao abandono e embargos impostos pelas nações que anteriormente exploraram o país e os escravos.

Quanto ao terremoto, acredito que qualquer país que esteja situado sobre as bordas de placas tectônicas, independente do credo religioso que professe, está sujeito a ser atingido por um terremoto.

Se os povos do Haiti fossem brancos, teriam feito até filmes sobre a revolução que lhes concedeu a liberdade, e tal vitória seria creditada à ajuda de Deus, mas como é um país majoritariamente negro, é mais fácil, explicar a vitória e as desgraças lá ocorridas como frutos de pactos demoníacos.

Penso que o diabo é um ser pessoal, inteligente, que atua no mundo, mas, muito mais do agir em e através de pessoas, sua maldade possui alcance maior quando ele se apossa de estruturas, ideologias e instituições. E sua ideologia preferida tem sido a racista, que tem causado milhares de conflitos e mortes ao longo da História.

Infelizmente, a História e as vigentes injustiças decorrentes da escravidão impedem nosso silêncio sobre a questão negra, pois a ideologia racista deixou suas marcas satânicas até mesmo dentro da Igreja Cristã. Sim, até mesmo igrejas podem ser usadas pelo mal! Pois, serve ao diabo toda igreja cuja pregação aliena, escraviza, impede a pessoa de crescer e de desenvolver o seu pensar. Toda igreja que se coloca ao lado dos poderosos deste mundo traiu o Evangelho, negou a fé, se tornando pior do que os infiéis.

Religião que não incentiva o saber e crescer humano é instrumento do mal, pois o diabo é o principal interessado em manter as pessoas na ignorância. Igreja que não incentiva o saber, buscando unir piedade vital e ciência, não proclama a Boa Nova de Jesus, pois o Evangelho de Cristo é libertador e não aprisionador.

Toda vez que uma religião oprime, mata, discrimina, usando do poder político para se expandir, deixa de servir a Deus, passando a ser útil, ainda que inconscientemente, àquele que é o oposto de Jesus Cristo e pregando o oposto à verdade, o oposto do amor, o oposto da justiça e da paz.

Relacionar o africano a maldição é desconhecer as Escrituras, aceitando de forma acrítica interpretações teológicas distorcidas que serviram aos interesses escravistas que se firmaram na Europa com as Grandes Navegações e a descoberta dos chamados "Novos Mundos". É demonstrar ignorância quanto ao Cristianismo de Matriz Afro, muito mais antigo que o Europeu, e que permanece mais puro do que o catolicismo e protestantismo europeu.

Concluo dizendo que: minha leitura bíblica me diz que o demônio escraviza, mostrando-me que ele veio para roubar, matar e destruir. Com base nesse meu pensar eu gostaria de lembrar ao Cônsul, ao Pat Robertson e a outros que pensem igualmente a eles, que, quem praticou roubos, morticínios e destruições de culturas e civilizações inteiras com maior eficácia e freqüência foram os chamados colonizadores europeus.

Além desse lembrete, deixo as seguintes indagações:

Se o diabo veio para roubar, matar e destruir: qual o espírito que se movia na cristandade, nas Cruzadas, inquisições, colonizações e outras atitudes que mataram a milhares de pessoas?

Sendo assim, quem se aproxima mais de ligações com o diabo? Os dominados, ou seus dominadores?

Qual espírito que se movia nas Igrejas alemãs, que as levaram ao silêncio ou apoio ao nazismo? Excetuando o pastor Dietrich Bonhoeffer e os outros defensores da Igreja Confessional, que se opuseram ao regime de Adolf Hitler e por isso foram ferozmente perseguidos pelo nazismo.

Se o ocorrido no Haiti foi devido a "pactos satânicos", como explicar então desastres naturais ocorridos em países cristãos, tais como, Brasil, EUA, Inglaterra e etc.?

Nas infelizes palavras do Cônsul, cujo pensar é semelhante ao de inúmeros cristãos, podemos ver que a interpretação teológica causadora da desgraça de um continente inteiro e dos africanos na diáspora forçada, ainda está viva e latente como mantenedora da discriminação étnica que leva a exclusão social e ao preconceito religioso em relação ao povo negro.

É por causa de declarações como as de Pat Robertson e do Cônsul haitiano que teólogos comprometidos com a verdade, justiça e a paz não podem se calar! Pois, se no passado usaram e ainda hoje usam a teologia como instrumento de alienação e discriminação, é nosso dever cristão, por fidelidade ao Evangelho, usá-la em favor da conscientização e libertação.

Pr. José do Carmo da Silva. (Zé do Egito), afro-descendente (descendente de africano).
Igreja Metodista do Brasil.


Fontes: HOORNAERT, Eduardo. O negro e a Bíblia: um clamor de justiça. A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil - colônia (um inventário) Petrópolis: Vozes, 1988.

A história do Haiti é a história do racismo - por Eduardo Galeano



A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca ideia de querer um país menos injusto.


O voto e o veto

Para apagar as pegadas da participação estadunidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder. O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito nem sequer com um voto. Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe: – Recite a lição. E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.



O álibi demográfico

Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhe, em Porto Príncipe, qual é o problema: – Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode. E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado. Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado… de artistas. Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.



 A tradição racista 

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas do Citybank e abolir o artigo constitucional que proibia vender as plantations aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem “uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização”. Um dos responsáveis pela invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz: “Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses”.

O Haiti fora a pérola da coroa, a colônia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava. No Espírito das leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: “O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até à cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro”. Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: “Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos”. Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro “pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala algumas palavras”.



A humilhação imperdoável 

 Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos haviam conquistado antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a trabalhar nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores. A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.



O delito da dignidade

Nem sequer Simón Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar havia podido reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já o havia derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe entregue sete naves e muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma ideia que não havia ocorrido ao Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti mas convidou a Inglaterra.


Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis. Por essa altura, o Haiti já estava em mãos de ditaduras militares carniceiras, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indenização gigantesca, a modo de perdão por haver cometido o delito da dignidade. A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental.


Eduardo Hughes Galeano (Montevidéu, 3 de setembro de 1940) é um jornalista e escritor uruguaio. É autor de mais de quarenta livros, que já foram traduzidos em diversos idiomas. Suas obras transcendem gêneros ortodoxos, combinando ficção, jornalismo, análise política e História.


Colaboração do Frei Gilvander Moreira para o EcoDebate, 23/01/2010


Fonte: http://www.ecodebate.com.br/2010/01/23/a-historia-do-haiti-e-a-historia-do-racismo-artigo-de-eduardo-galeano/

domingo, 1 de dezembro de 2013

O mês da Consciência Negra passou, todavia, a reflexão e a ação continuam. Mano Ednei entrevista Mano Zé.

No dia 20 de novembro comemora-se o Dia Nacional da Consciência Negra, em homenagem à morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. E no mês da Consciência Negra, a TV FATHEL apresenta um bate papo com José do Carmo da Silva, que é aluno de Pós-graduação na FATHEL - Centro de Formação Humana Integral, militante do movimento negro e coordenador da pastoral regional de combate ao racismo da Igreja Metodista 5ª Região Eclesiástica, para falar a respeito das relações étnicas e da situação do negro no Brasil. Assistam, divulguem e inscrevam-se no canal da TV FATHEL no youtube. Fale conosco: tvfathel@fathel.com.br

Confissões de um velho reprodutor

           Confissões de um velho reprodutor

        
           
           
           
A Sinhá correu a senzala e apartou as escrava que tava no "vicio", nas quadra da lua. Quando a quadra da lua tá certa, a "cria" é garantida. Era um rebanho de umas dez, no ponto pra tirar raça. Não era qualquer fazenda que tinha reprodutor nagô-mina, como eu. No rebanho tinha uma chamada Duca, do lombo bem feito, da anca lisa, de tetas que ia dar bom ubre, de umbigo bem curado, uns quarto que dava gosto. Andei no meio delas, negaceando, mas só via a Duca. Mas ela arrepiou, medrosa. Correu se esconder. Mas reprodutor é bicho paciencioso. Eu sabia que tinha um mês para repassar todas. De longe eu ouvia o choro dela, baixinho pra ninguém ouvir. Se a Sinhá ouvisse, o "bacalhau" comia no lombo. Fui chegando de mansinho, com fala macia, agradando. Eu era reprodutor que sabia tratar suas fêmea. O choro virou cochicho e, no fim da tarde, a Duca, negrinha de quinze pra dezesseis anos, já tava prenha.

Meu espanto vai aumentando à medida que a mente lúcida, a malícia e a inconsciência de João Antonio vão se revelando. Com meia dúzia de frases, ele traça o quadro de abjeção humana que eram as senzalas do Brasil imperial. Oitenta e quatro anos depois da libertação, João Antonio ainda raciocina como o animal que a escravidão o tornou. O pescador Chico afasta-se com expressão de incredulidade. As mulheres sorriem como se João Antonio caducasse. Ali, naquela praia, só eu sei que tudo é verdade, que homens podem ser animalizados pela escravidão. Ele também sabe, mas não tem consciência. Aos 122 anos, continua o reprodutor nagô-mina que enxertava escravas para que o patrão tivesse braços para o trabalho ou rebanho para vender.

- E se a escrava não temesse o "bacalhau", resistisse?
- Isto não acontecia. Não podia acontecer. Mas, e se acontecesse? Você pegava na "amarra"?
Seu olhar escravo, vindo ainda de 1888, examina-me como se eu fosse alguém nunca encontrado. Vejo-me jornalista que entrevista touro ou cavalo pastor.
- Nunca peguei na "amarra". Eu era muito cúmplice.
Sinto que não estou numa praia, mas num estábulo ou numa baia, com torrões de açúcar na palma da Mao. Minhas palavras ou gestos precisam ser raspadeiras que alisam e acariciam crinas e ancas. Minha voz também se toma cúmplice.
- Cúmplice, como, João?
- Homem é bicho perigoso, sabe maneirar. Eu ganhava elas, falava manso, alisava, dava coisa. Sabe como é.
- Dava o que?
- Reprodutor era bem tratado. Se não
tivesse sido bem alimentado, já tinha morrido há muito tempo. Ainda não estou aqui, com 122 anos no lombo? Eu tinha carne, leite, arroz - comia o que o patrão comia. Eu repartia com elas. Para as negas, era ate bom ter um reprodutor como eu. Dava carinho, comida. Tirava da boca para elas.
- E os escravos que não eram reprodutores, comiam o que?
- Angu.

Volta-se para mim, passando o dedo de unha amarela na testa, onde ruga é um sulco profundo. Seus olhinhos passam ligeiros sobre os seios das mulheres dos pescadores.
- Se a mulher ta na "ocasião", fica fogo sai, pisando brasa. Mulher e como porca, vaca, égua. Na "ocasião" dela, entrega mesmo. Feio ou velho, qualquer macho serve. E eu era um negro sarado nas ferramenta.
As mulheres dos pescadores afastam-se rindo. João olha-me de lado com um risinho casqueiro.
- Você não sentia pena das escravas?
João olha-me como se eu fosse alguém tão distante da escravidão, que não consegue entender o mundo das senzalas.
- Por que ia sentir? Nos tava lá para isso, para reproduzir. O fazendeiro precisava de negrinho pra levar na feira.

- O barão de Guaraciaba deixava descendentes dele serem vendidos em feiras?
- Não fui reprodutor na fazenda do meu avô. Saí de lá com dezessete anos: meu pai me deu pra dom Pedro II e fui morar em Petrópolis. Quando tinha 23 anos, dom Pedro II me presenteou ao barão do Rio Branco. Fui morar na Fazenda dos Correia, do barão do Rio Branco, também em Petrópolis. Foi lá que comecei o trabalho de reprodutor.
- Você disse que as escravas ficavam trancadas com você durante um mês. E depois?
- Depois que tavam enxertadas, iam trabalhar: umas na roça, outras na cozinha, em qualquer serviço.
- E você?
- O fazendeiro me mandava tomar um pouco de ar. Eles era branco, mas era bom.

A mulher do pescador, gorda, com seios enormes, debruça-se sobre a mesa de tábuas rústicas e olha fixamente João.
- Que vidão, hein, vovô João? Enquanto os outros davam duro na enxada, você levava as mulheres deles para cama.
- Mulher de quem? Ninguém tinha mulher. Era tudo do fazendeiro. Já viu touro ter vaca só sua? Ou cavalo? Era meu trabalho. Quando não tinha escrava para enxertar na fazenda do barão, ele me alugava ou emprestava para outra fazenda. Mas acho que eu era alugado.
- Por que?
- Quem dava negro de graça? E um negro como eu, de raça? Nunca soube quanto o barão cobrava, mas sei que cobrava por escrava enxertada. Os fazendeiro devia pagar bem porque sabiam que filho meu era nego de nação, de nação africana.
- As escravas dos outros fazendeiros eram levadas para a fazenda do barão?
- Nãaaao! Eu ia para a fazenda de quem me pagava. Quando chegava lá, já tava apartado dez, vinte escrava pra enxertar. Ficava dois meses, depois voltava pra fazenda do barão. Só na Cachoeirinha andei deixando uns catorze filho, mais ou menos. E na Água Limpa, Igapira, Santa Catarina, Samambaia, tanta fazenda que tive? Sei que naquela época eu fiz para mais de cem filho. Os fazendeiro ria à toa quando nascia um macho. Mas macho ou fêmea, ia tudo parar na feira.
- Você não sofria por seus filhos? João olha-me como se eu fosse incapaz de compreendê-lo:
- Sofrer por quê? As cria pertencia a eles. Não podia sentir nada. Algunzinho sempre chorava, mas o que se podia fazer? Meu trabalho era reproduzir. Quem vendia era o fazendeiro.
- O que acontecia se não emprenhasse as escravas?
- O senhor tem um cavalo que não presta. Vai dizer que não presta? Claro que não. As escrava que não pegava filho, eles punha com outro reprodutor. Tinha muitos, não era só eu, não. Se a escrava não ficava de barriga cheia, era vendida. Quem fica com vaca que não dá cria?
 - Mas trabalhavam.
- Precisava trabalhar e parir. Comigo era difícil bater falha. Fui bom reprodutor em todas as fazendas onde tive. Só dei produção boa, macho ou fêmea. Se a fêmea que nascia era nagô, a Sinhá ficava contente que só vendo.
- Por quê?
- Fêmea nagô é da perna grossa. O senhor sabe: nega dos quarto largo, perna grossa e bunduda, da boa cozinheira, ama-de-leite, serviço de casa.
- E se nascesse mina?
- Ai era o sinhô que ficava rindo para as paredes. Mina e da canela fina - sinal de bom trabalhador, o que há de melhor no cabo de uma enxada. Não estou com 122 anos e não limpo sozinho meu bananal? Não tenho medo de ninguém, não, no cabo de uma enxada. Agora, imagina quando eu era moço.

Vejo-me na estrada acompanhando João, quando foi me mostrar a roça onde trabalha, cultivando bananeiras na encosta de um morro. Ele ainda consegue sobreviver, vendendo bananas em Mauá. Como sua tapera no bananal caiu, João vive numa pequena casa de alvenaria inacabada, na praia de Mauá. A casa pertence a uma senhora de Magé, que trata de sua aposentadoria e é sua procuradora.
- Você nunca se casou, João?
- Eu só vivi entre mulher, para que casar! Depois, escravo não casa, reproduz. - E depois da libertação, quando não podia mais ser reprodutor?
- Quando veio a libertação eu tava com 38 anos, acostumado a viver daquele jeito. Na minha escravidão eu era homem amado. Fui na liberdade também. Depois da libertação eu tive treze mulher, tudo amigado. A ultima morreu faz nove meses. Tinha 31 anos.
- Você com 122 e ela com 31?
Em seu rosto há espanto, como se o tom de minha voz o tivesse ofendido.
- E por que não? O que cai na minha linha fica seguro como peixe bem fisgado.

De repente, os olhos miúdos e extremamente vivos brilham de maneira diferente. Sinto receio de dizer alguma coisa e afugentar o pensamento que começa a brotar em sua mente. Fico parado numa expectativa. ansiosa. João passa a Mao pelo rosto, ajeita a perna da calça, olha-me de lado e percebo que a lembrança - fruto da verdade ou da imaginação - toma conta de seus pensamentos. Continuo em silêncio, aparentemente observando a parede de reboque da pequena sala, onde ele mesmo cozinha peixes e alimentos que os pescadores lhe dão. No chão de terra batida, no lugar onde dorme, marcas de seu corpo. João pigarreia, tentando tornar a voz bem clara.
- Também tive filho com branca. Era filha de fazendeiro e chamava Raque1.
Filha de fazendeiro?
Dono da Fazenda Cavaru: seu Januário. Raquel era mais velha do que eu. Gostava de mim porque eu era um crioulo parecido. Era forte, bonito, bem aparelhado. Pois não era um reprodutor? Aconteceu na cozinha.
- Na cozinha?
- O fogão era meio inclinado. Eu trouxe a lenha rachada e ela tava lá, me esperando. Dei o que ela queria. Depois foi em outros lugar. A fazendeira descobriu e fomos parar no delegado. Mas o delegado sabia que eu era filho do barão de Guaraciaba e perguntou: "Quem deitou primeiro?" "Fui eu", respondeu Raque1. "Quantos anos tem?" Raquel confirmou: 23. Eu tinha dezoito. O delegado olhou seu Januário e sentenciou:' "Então, não posso fazer nada". Foi depois disso que meu pai me deu para dom Pedro II e fui morar em Petrópolis. Não peguei outra branca porque não achei. Nesta hora ia um homem sarado como eu pensa em castigo? E pra mim é tudo igual: branca ou negra leva um homem para o fogão.

É para lá que ele caminha cada vez que abre a boca: as enormes senzalas dos barões do império são seus castelos, onde, nas paredes, ficaram seus brasões com desenhos que lembram Pompéia - O sexo masculino com asas. Os enfeites de sua memória são correntes, gargalheiras de ferro. Os alimentos do passado - carne, leite, arroz - são sonhados na pequena sala onde não há nem mesmo folhinhas ou santos de parede. Os muros onde está preso são lisos e muito altos e não fornecem qualquer possibilidade de fuga. São como cercas de arame farpado em volta da placidez verde da baía de Guanabara, onde ele se vê solto como magnífico garanhão no meio de éguas fogosas. Dormindo como animal no chão de terra, ou trabalhando no bananal quente como fornalha, sonha apenas com sinhas e sinhôs, com escravas, com crias suas em feiras esperando para serem vendidas.
- Só tenho medo de uma coisa.
João acende o cigarro que lhe ofereço.
Solta a fumaça olhando o mar com expressão triste.
- Do que é que tem medo, João?
- Tenho filho espalhado no mundo, de escrava de Minas, Bahia, São Paulo, Pernambuco. Sei que sou homem que não pode meter a cara com qualquer mulher. Pode ser que seja neta minha. É só isso que me preocupa, quando vejo uma negra e sei que posso "traçar" ela. FIM



(1) João Antonio é filho da escrava Angelina Maria Rita da Conceição, de raça nagô-mina, e de um filho do barão de Guaraciaba, e nasceu na Fazenda da Glória, de propriedade do barão, em Campos, Estado do Rio. É por isso que João Antonio assina Guaraciaba, como todos os escravos que, filhos de fazendeiros, assinavam o nome de seus proprietários. O barão de Guaraciaba é o construtor da ponte de bronze que existe em Campos. Empobrecido com a libertação dos escravos, o barão vendeu suas propriedades para acabar de pagar a construção da ponte.


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Duncan um exemplo de superaCÃO. - mano Zé

Aos seres fortes, quando a existência apresenta a dificuldade, a vontade de viver a confronta com resistência, resiliência, possibilitando a superação das mais duras realidades. O que faz um ser completo não é nascer completo, pois completo ninguém nasce, nascemos destinados a completar nosso ser com a garra de viver e disposição para lutar. Isso vale não só para os seres humanos, mas para toda criatura. Veja o Duncan, um ser completo pela alegria e vontade de vencer apesar das dificuldades que o acompanham desde seu nascer, mas que não o impediu de ser.

- mano Zé.